‘vó, o que é a loucura?
Ora, vê no dicionário.
Já vi… hesito. Não chega. Apresso-me a continuar. Já procurei em todos os livros lá de casa. Não me dizem o que quero saber.
Um canto trémulo na boca da mulher entretida a tricotar. Estranho. Que quer o meu pequeno cavaleiro saber que não venha em todos os bons livros que tem?
‘vó… avanço e sento-me à frente da mulher, olhos resolutos fixados nas lentes que a ajudam a passar as malhas. Eu quero saber o que é a loucura cá dentro. Uma dor de cabeça, um aperto no estômago? Nunca vi a Avó doente e ainda assim… calo-me.
… e ainda assim a tua mãe diz-te que minha doença é a loucura, não é verdade, meu querido?, completa, a voz doce e traquina de sempre. Cujas imperceptíveis traições só bem mais tarde consegui identificar. Pousa as agulhas e as lãs no regaço. Não é uma dor. És tu. É a tua imaginação ser maior que tu, tão maior que te sentes como uma gotinha de chuva no oceano. O teu mundo muda e não tens limites nem fronteiras. E sem limites e sem fronteiras a imaginação cresce mais ainda e muda o teu mundo outra vez, e outra, e outra. Lembras-te de que te sentias como uma gotinha de chuva? Pois essa gotinha de chuva não demora a embalar nas correntes do oceano e esquecer-se que o mundo mudou. É confortável, apaziguador, fácil – só tens de te deixar levar pelas correntes do oceano.
Fechara os olhos pouco após as primeiras palavras. Parecia ausente. Mas eu era demasiado curioso. Não percebo, ‘vó. Eu gosto de flutuar quando estou no mar. E a Mamã até se ri e diz que pareço um peixe-estrela.
Ah, meu pequeno cavaleiro, este oceano de que falo não está numa praia. Está aqui dentro, abre os olhos e aponta para a sua própria fronte, como eu também estou aqui dentro. Agora. Porque a loucura é esse oceano tornar-se em ti e perderes-te nele. Pode mesmo deixar de se estar lá, sabes, nunca mais voltar. Assim mesmo, em tom conversador, tom de quem conta uma história que conhece bem a alguém que sabe estar a ouvir.
Como sempre, genuinamente interessado, estou. Rogo-lhe, A Avó voltou?, que a não guarde para si apenas.
Mais ou menos. Digamos que a gotinha de chuva se lembrou que não era suposto ter tanto sal nela. E assim conseguiu chegar à tona e manter-se lá. Infelizmente, nunca evaporou de novo para as nuvens. Aprendeu a viver entre os dois mundos; uma vez mais ligada a um, outra mais ligada a outro. E esse passou a ser o seu novo mundo.
1 comment:
Esta é das ótimas, porque eu não tinha lido esta antes?
Teu blog é uma benção, como um grande livro de historias que não se pode chegar ao fim apressado em apenas uma noite, mas sim deliciarmo-nos um pouquinho com ele a cada momento em que precisarmos
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