Thursday, September 21, 2006



























1: Madrugada. Um par de horas depois de ter adormecido.

Estava frio, não obstante o reconfortante calor emanado pela minha irmã, por quem Morpheu certamente zelava. O vento, uivando violentamente, fê-lo esquecer-se de mim, e acordei. Demasiadamente cansada para me levantar sequer, deixei-me ficar na cama, de pálpebras cerradas, escutando a fúria de Éolo ressoando no mais pueril dos silêncios.
Embalada por um e ouvindo canções ciciadas ao ouvido pelo outro, em breve a preocupação com Kronos deu lugar ao subtil sentir, não infundado, do aproximar de algo, de uma mudança, há muito desejada. Que de subtil sentir passou a insistente dúvida, a teimosa afirmação, a vincada obstinação.
Por momentos, quando o desejo se misturava já febrilmente com a realidade, julgo ser enganada pelos meus sentidos… Mas, não. Não tinha ainda adormecido, teria de ser verdade. Poucos segundos de respiração contida e todos os meus poros em ouvidos delegados confirmam-no. Sinto, então, percorrer-me o delicioso arrepio que a chuva me provoca ao aumentar de intensidade. Sinto invadir-me a nostalgia trazida por cada gota de chuva, sempre acompanhadas de algo que se assemelha a felicidade.
Paralisada no êxtase de sentir a chuva na minha pele, de novo vislumbrei a doce presença de Morpheu. Abracei a minha irmã, e de novo adormeci.



2: Entre a Manhã e a Tarde. Algures.

Sentada, num local público. Que poderia igualmente estar deserto. Porque a presença dos outros é irrelevante. Conversas triviais mantidas com desconhecidos, pequenas frases, escassas palavras, o dar de uma informação apenas. Era como lá não estar, como apenas para a realidade acordar quando se deambula pelo sonho. Talvez estivesse só, afinal.
Chegaste entretanto. Casaco molhado pela chuva, como quase todos nesse dia. Pediste licença para te sentares no banco. Apercebi-me de que estava molhado, e respondi que não. Para meu espanto, detiveste-te, surpreso. Apressei-me a explicar, e movi-me para que pudesses sentar-te. Entabulámos conversa. Não nos víamos há já algum tempo, falámos de nadas. Notei-te cansado, um toque de tristeza na voz. Reprimi a curiosidade.
Uma mulher veio sentar-se na ponta livre do banco, pouco se importando se ficávamos apertados. Não obstante, ainda pediu para nos chegarmos para o indefinido lá. Acedi, suportando a tentação de lhe retribuir a educação e a simpatia. Mas tu, com os cotovelos apoiados nos joelhos, não lhe ligaste, muito menos te moveste. Comecei a ler A Cinza do Tempo. Duas crónicas depois, recostaste-te, e tocaste o meu braço com o teu. Fortuitos eram os olhares que à mancha gráfica ias lançando, acompanhavas mesmo o ritmado desfolhar. Perguntava-me se estarias interessado em ler, tinha-lo feito à capa. Mas nada disseste.



3: Kronos. A despedida.

A tradicional voz cavernosa ressoou pelas velhas paredes do edifício, anunciando o almejado horizonte casa. Levantei-me pensando que ficavas, afinal ias também. Uma vez mais, os teus modos foliões revelaram contigo já não coabitar. Do teu sorriso escancarado, do residente brilho dos teus olhos, das quási-cómicas posições que sempre adoptavas ao falar, saudades. Tomaras a melancolia por nova companheira.
Sentámo-nos longe. Apesar de apenas cair lá fora, de cabeça encostada ao vidro podia senti-la ali, ao meu lado, qual almofada a que Morpheu irrecusavelmente nos convida. Chuva, inevitável chuva. Berma, tantas vezes percorrida, foste de novo o alvo do meu fitar.
Parámos, levantaste-te, saíste. Incomodado pelo aguaceiro que persisitia, logo te resignaste a um potencial resfriado. Saindo do torpor pelos familiares solavancos causado, vi-te. Olhaste para mim, com os lábios sorriste, e murmuraste um tchau que consegui ouvir sem dificuldades. Repeti o gesto, e uma onda de alva espuma rebentou na praia quando vi, meigos e ternos, os olhos mais bonitos do mundo a sorrir também.


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* Today, you made me happy with your smile, so beautiful and kind, so beautiful and kind…