Wednesday, November 16, 2005




















Pesa o silêncio sobre os ouvidos, pois vago e distante soa o suave sibilar do vento. Imersa na escuridão, há muito que fito o tecto, na esperança de tranquilamente adormecer. Mas vai o sono tardando, escondendo.se em cada imagem que revejo, em cada palavra que recordo, em cada afecto que retenho. De aleatórios e desconexos a simbólicas cadeias celeradamente passaram, introduzindo a dúvida de espontâneos terem sido ou masoquista e consciente vontade de recordar.

É tarde, devia dormir.

Qual enredo de má qualidade, sujeito a um péssimo realizador, se desenrolam as imagéticas memórias. E os espaços, qual cone invertido, cada vez mais desprovidos de cor, alegria e calor se apresentam, imperando a cinzenta angústia da latente tristeza.

Fere o que deveria ser esquecido, dilacera o que nunca deveria ter sido presenciado, simplesmente magoa a lembrança... Quero dormir.


Estou só, vagueando numa rua deserta: uma calçada sem fim, por altos prédios ladeada, sem qualquer iluminação. Está escuro, e arrefece. Apercebo.me de que tremo consideravelmente ao encolher.me para me manter quente. Vários olhares parecem fixar.se nas minhas costas, pertencentes a seres sem rosto que enchem agora a rua: vultos escuros com ar apressado, murmurando imperceptíveis, estranhamente reminiscentes, palavras. Saber se avanço, se recuo, se me afasto ou aproximo, não consigo.

Puro cinismo, disfarçada curiosidade ou verdadeira indiferença… Onde estou?

Apesar de apinhada a rua, vislumbro um pouco de cor, alguém familiar, e corro ao seu encontro. Toco.lhe, incessantemente e em vão, o ombro, e, do mesmo modo que o vislumbrei, o perco de vista. Paro, e volto.me para trás. No meio da multidão, erraticamente como todos os outros, vindo na minha direcção, o mesmo que me ignorara. E que o volta fazer. Uma e outra vez, a mesma e outras pessoas, cada vez mais frequentemente.

Porquê?

Corro de um lado para o outro, não me importando já com quem atropelo, querendo, ansiando apenas que alguém me devolva o olhar e me não trate como se me não visse, como se as minhas mãos não sentisse. Quero falar, quero chamá.los, mas nenhum som emitir consigo, como nada consigo ouvir. Ardem.me os olhos, sei que choro. Embora todas as razões procure, nada continuo a perceber. Vejo agora apenas conhecidos e amigos, para quem nem miragem pareço ser. Angústia. Solidão. Medo. Pânico. Nulidade. Todas as palavras reprimidas se acumulam num só grito, que por não poder sair se auto-reprime. Sufoco. Em meu redor, apenas desfocados fragmentos vejo, onde, ironicamente, se voltam e aproximam de mim os rostos que me ignoravam. E tudo fica mais turvo à medida que choro e por socorro tento gritar, e mais à minha volta se adensa a multidão… Até que, por uma última vez, inspiro.

Ergo.me sobressaltada na cama, com as mãos em volta da garganta. E ouço dissolver.se o grito por entre a tranquilizante chuva que na escuridão abundantemente cai.

Friday, November 11, 2005


















Imagens deambulando livres pelo olhar, ruídos e melodias contrastantes em aparente e antagónica harmonia, imiscíveis odores pairando evasivamente. Delimitar o começo do sonho, inexistente espaço fronteiriço, e o desvanecer da realidade, ominoso sonho mascarado, hercúleo e desnecessário esforço seria. Quaisquer tentativas, vãs, de o fazer mais não permitiriam que reconstatar a frivolidade, a fealdade, a podridão da segunda, e a vital necessidade de no primeiro se refugiar. Demasiadas sendo as figuras construídas sobre primordiais almas puras, continuamente pelo hedonismo moldadas, pela avidez empedernidas, pela corrupção corroídas, pelo ódio desfiguradas, é eminente desejo a total abstracção e supra almejada a fuga. Espíritos conturbados em infrutíferas caminhadas se lançariam na busca de tais metas. Indubitável e óbvia é a resposta, serenamente reflectida num qualquer espelho, que da alma nenhuma cópia apresente, mas um seu mero esboço, pois necessário é que se aprenda a ver. Os olhos se cerrem, e se abra o espírito. Cessem os vagos devaneios da vida, alastrem as subjectivas emanações do viver. Tudo o mais deixe de importunar. De asas próprias há muito desprovidos, alado é o suposto aliado, que, por entre uma realidade de vazias existências, a tranquilidade permite, a escuridão da máscara perdoa. Sonho, que em ti divagando és encontrado, confundido, não raras as vezes, com a eterna efemeridade do ser realmente, quantas almas não já perdeste, quantas não farás ainda perder. Porque o rio corre, e atrás não volta. Triste é o Fado dos que nos teus mais recônditos meandros insensatamente se lançam, e presos ficam na implacável teia da ficção. Latente é a ironia intrínseca às distintas e ambíguas realidades da vida, que, inseparáveis, inequivocamente intransponíveis são. Se irreal é a vida a que desesperadamente fugir se tenta, irreal é, também, o sonho, cuja vivência se tenta alcançar, por, para o plano da terrena existência, ser transposto.

Criaturas espectrais sempre soubemos que somos. Cobre o véu da verdade que sobrenatural e incognoscível ente se divertirá a fazer-nos sofrer, retirando-nos a única alternativa que um dia, imbecilmente, pensámos possuir…

Sonha, ilude-te, e a realidade estará, mais áspera do que nunca, à tua espera…

Monday, October 10, 2005



























Era uma vez um dia de Outono. E umas nuvens no céu.
Ameaçava, e choveu mesmo. Foi escurecendo, à medida que o nevoeiro adensou. Apenas a chuva, caindo ritmadamente, se descortinava; de vez em quando, pequenas névoas ondulavam ao reconfortante som do vento sibilante. E, com o nevoeiro, pairando, veio o sonho... Tudo o mais, remetido para uma longínqua noção de realidade. Remanesce a dúvida de sonho ter, realmente, sido, ou mera tentativa de o recuperar... Com ele, outros mais antigos, nem por isso distantes, regressaram. Sonhos que se querem adormecidos. Coisas boas, talvez; mas que tão somente fazem sofrer.
A tranquilidade de até então, pela chuva imposta, com ela se dissolveu. Nada prevalece, tudo é demasiadamente fugaz. Só a tristeza não. Ainda assim, a chuva é das poucas coisas que me fazem verdadeiramente feliz.
Ironia? Não. Era uma vez... A complicada eu.

Saturday, October 01, 2005



























Vidas transbordantes de éter,
vago engano, oca realidade;
míriades de almas iguais,
aceitáveis porque iguais,
normais porque iguais,
inúteis porque iguais.
Tempo fugaz e esguio,
impossível, loucos!, de possuir
antes o ignorar que por o querer
ele fugir.
Mas, vazio que vão preenchimento busca
saber não o pode
nem coração tem que o queira.
Futilidades sucessivas
que, do simples, nojo aparentam
enojam os aparente simples
que sorrindo se enganam
por delas não viver.
Com o desprezo conformados,
incompreendidos na sua sanidade
num mundo de loucos a viver forçados
eles próprios por loucos tomados.
Diferença;
fonte de tumultuosas águas turvas,
inultrapassável fronteira.
Solidão.

Saturday, February 26, 2005

"Amar eficazmente a alguém é recusar-se a aceitar a sua caricatura. Rasgar todas as máscaras é a condição para que apareça a verdadeira face humana, no esplendor de sua verdade."

Todos nós temos a nossa própria máscara. Que é, indubitavelmente, mais ou menos transparente, consoante mais ou menos nos revelamos àqueles que nos rodeiam, que connosco partilham a crueldade desta vida que, teimosamente, insistimos em gozar. Amar surge, então, como o tentar do rasgar da máscara, e como o deixar que no-la rasguem.
A questão forte e avassaladora surge nesse momento: quando a máscara cai. Se transparente, o sentimento intensifica-se, a confiança prolifera, o bem-estar da pessoa que amamos necessariamente decorre dela e do estar com ela. Mas se translúcida ou totalmente opaca, são o desalento, a decepção, a angústia, a humilhação e o desprezo os emergentes ao cair o pano da peça, porque a vida mais não foi que representada.
Rasgar a máscara do outro implica consciência relativamente à própria, noção do quão frágil a mais bela e coesa representação é, quando nos expomos de tal modo. Porque, para rasgar a máscara do outro, temos de abrir uma fresta na nossa, para que a comunhão de almas seja tal que nos seja possível e permitido rasgar essa máscara. Amar, então ser verdadeiramente, sentir independentemente do outro mas, contudo, sentir o e pelo outro! Amar, ter a coragem de, antes que o outro rasgue a nossa máscara, a tirar na sua frente, revelar o íntimo do nosso ser, deixar que o outro o conheça, o percorra, o sinta como familiar.
Amar não é acto único, mas a reciprocidade na interpenetração das almas e na interrelação das inteligências. Onde a presença, a co-existência da confiança e da ousadia é pressuposta, não se admite, sequer, a negação do tocar a máscara, do esfaqueá-la, fazê-la e deixá-la cair. Por muito transparente que ela seja, por muito que à realidade se assemelhe.
Todo o ser se torna ambíguo, ainda que recto no seu viver. Se ao conhecido nada revelamos, é muitas vezes ao desconhecido que expomos as verdades, de uma forma subtil ou nem tanto. Ao ser que amamos e que nos ama, a nossa faceta de humano apresenta-se como algo de merecedor desse nosso amor, enquanto que a vertente de pensador e de amante a algo místico e fascinante se assemelha, fazendo-o querer rasgar a nossa máscara, querer ir mais e mais além, mais e mais profundamente, ao encontro da nossa essência.
Amar e ser amado, conceitos inseparáveis e necessários um do outro. Os dois pontos que unem e dão sentido à vida. Os utensílios que rasgam, destroem ou puramente a máscara de cada um ultrapassam. Amar não é ser transparente, inequívoco, conhecido; amar é permitir a comunhão do íntimo do ser, instigando o outro a descobri-lo, a desvendar o seu.
Amar é mais do nos revelarmos e deixar cair a máscara: é entregá-la, fazendo sentir a quem amamos que está seguro connosco porque, tal como ele, verdadeiros nos apresentamos.