Tuesday, April 03, 2007




















Há muito, muito tempo, vivia uma menina, lá para os lados da praia, que era assim parecida contigo: de mãos e pés pequeninos, cabeça redondinha, orelhas, nariz e sonhos grandes. Porque ela sonhava muito. Se calhar era porque dormia muito, diziam alguns, mas eu acho que era porque ela gostava muito de sonhar. Tanto, que nem se apercebia de que a vida dela não tinha nada que ver com esses sonhos. Lá neles, onde ela gostava de estar, a maré-cheia nunca vazava nem as gaivotas se calavam quando recolhiam a terra para se abrigarem de mais uma tempestade. E as pessoas ficavam também recolhidas em casa com medo dessa tempestade, e os barcos não saíam do porto, e só havia as gaivotas no pontão a fazerem barulho. Então, ela ia para lá, debaixo de chuva forte e fria como o vento que assobiava por entre os barcos e as ondas que se levantavam contra eles. Oh, ela não desejava que os barcos fossem despedaçados pelas vagas nem levados lá para longe, para o alto-mar onde ela gostava de estar, não. Mas gostava de os ver dançar na espuma que rebentava contra o paredão que protegia as casas e a lota, as cores garridas dos cascos flutuando de cabo laço e os mastros de velas recolhidas quase se tocando fustigados pelo vento. Ela achava bonito. Agachada contra uma parede qualquer, meia escondida dentro do oleado amarelo de pescador, lá ia afastando o cabelo molhado, sem caracóis e mais escuro de tão escorrido, da carita que entretanto ficava vermelha do frio que fazia. E, se as nuvens cobriam o céu e o tornavam cinzento quase noite, os olhitos dela não tardavam a fechar-se também embalados por todos aqueles barulhos próprios do mar e que só se escutam quando se sabe que ele não está zangado.

Mas, isso era só quando ela sonhava, porque geralmente não havia gaivotas a fazer barulho nem ondas cheias de espuma ou nuvens carregadas de chuva na praia onde ela vivia. Lá, só havia areia branca fina e palmeiras carregadas de cocos e pessoas que não eram dali quase sem roupa nenhuma vestida e que andavam sempre com óculos de sol. Lá, o mar era azul clarinho, quase doente, às vezes um bocadinho verde de tanto não se mexer. Os peixes eram pequeninos e não havia conchas partidas na areia, só búzios assim de tamanho médio em que os turistas fingiam conseguir ouvir o mar enquanto sorriam muito parvos para as namoradas. A menina desta história abanava a cabeça ao ver tudo isto, pensando para si mesma que as coisas calmas não tinham graça nenhuma, é um desperdício perderem-se tantas coisas bonitas neste sossego deprimente. Bem, ela não dizia deprimente, achava apenas que era triste aquele sol radioso e amarelo e quente ter debaixo dele tanta falta de movimento, de cheiros e barulhos, ter debaixo dele tanta falta de vida. E, então, vinham-lhe outra vez aos olhos as marés vivas e as nuvens altas e gordas que ela sabia carregadas de chuva, e ela desejava que o vento também se não demorasse muito e pudesse outra vez começar a chover. É que, perdida nestas suas ideias de menina sonhadora, ela virava solenemente as costas ao que meio mundo procura e abandonava-se sonhando que assim iria acordar.

Um dia, choveu lá onde ela vivia e ela sorriu, feliz, porque se beliscou e não estava a dormir.


___

– A tua história é muito triste.
– Porquê?
– Porque a menina gostava muito de uma coisa mas não a podia ter. Só podia sonhar com ela.
– E isso é mau?
– É. As pessoas só deviam sonhar com o que podem ter porque assim não andavam tristes por não poderem ter essas coisas.
– Talvez. Mas, diz-me, a que chamarias sonhar então?
– ...
– Então?
– Não sei.